Por Paulo Scott
Foto: Lisboa, Portugal, 2011 │ alatryste.com
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A onda selfie – você sabe (depois da última edição da entrega do Oscar, todo mundo sabe) –, isso da pessoa se autofotografar, não é novidade alguma, apenas ficou superagravada pelas facilidades tecnológicas recentes e pela adesão eventual de celebridades em chamas, – transformando a maioria do mundo num grande funcionário do mês, na melhor das hipóteses, num colaborador não remunerado, do Instagram – como tudo na história da humanidade, deve ter surgido de uma necessidade.
Aqui nas minhas conjecturas, e já ficcionando sobre os primórdios dessa manifestação que se transformou em febre comportamental, imagino a figura do viajante solo em férias – resisto com todas as forças a rotulá-lo de viajante solitário. Porque o bom de viajar de férias (e férias sempre arrastam uma série de exigências) para um lugar bacana, todo mundo sabe, é poder mostrar depois que se viajou para um lugar bacana. Registros de imagem, eventualmente de ação, colocam-se como exigência capital, sobretudo nesta nossa atualidade que cobra de todos um comportamento solar.
Pessoas que viajam sozinhas são subgênero glamouroso do gênero pessoas que estão sozinhas, para o bem ou para o mal da própria sanidade, nesse subgênero estão os que conquistaram uma espécie de blindagem à La Mágico de Oz contra a solidão se reservando (reservando, no caso do viajante solo em férias, a própria imagem, ou ação, acompanhada por uma vista maravilhosa coadjuvante ao fundo e poses especiais, o clássico fazendo caras e bocas, ou não) para se mostrar depois a alguém que possivelmente recepcionará com interesse a imagem, ou ação, do momento, infungível graças ao peso afetivo depositado nele, vivido pelo viajante solar, a ponto de ser compartilhado e aplaudido, completando algo; sim, completando, fechando um círculo, justificando o estar aqui enchendo com pás e pás de carvão o motor do existir, pelo menos à La Mágico de Oz.
Já viajei sozinho pelo Brasil e pela Europa algumas vezes, já viajei acompanhado também. Em matéria de revista lida recentemente em sala de espera de dentista, alguém caracterizava os que viajam sozinhos de férias como sendo pessoas que optaram por se isolar dos problemas, por escapar – escapar no sentido gravitacional extremo do termo escapismo. No texto dessa matéria estava enfatizado, e isso foi o que mais me soou engraçado, que, muitas vezes, ter companheiros de viagem é igual encomendar problemas. Penso que viajar sozinho para lugares bacanas é legal pelo ineditismo da experiência, pela sua eventualidade também, funciona uma vez, duas, três, no máximo, porque, na grande moldura ideal, o bacana é viajar para lugares bacanas com alguém bacana.
Afinal, de que vale o paraíso sem amor? Ou sem amizade? Ou pelo menos, sem alguém para beliscar gentilmente o seu bracinho e provar que você não está sonhando, nem virou Napoleão Bonaparte?
Prometo que daqui não passo.
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No próximo domingo viajo para Portugal, onde ficarei por quase quinze dias participando de encontros literários na Ilha da Madeira e em Lisboa.
A Ilha da Madeira é um lugar que eu sempre sonhei conhecer (nesse imaginário não deixa de ser uma Ithaca de onde eu nunca parti, embora, tendo eu sangue português correndo nas veias, talvez tenha partido de lá ou avistado sua geografia em algum trânsito antepassado perdido no tempo e nas motivações gerais da humanidade). Viajo com a certeza de que encontrarei amigos que prezo e será muito agradável, mas penso que voltar a encontrar Lisboa depois de tantos anos e pisar pela primeira vez em solo mítico da Ilha da Madeira seriam oportunidades que só estariam completas se Morgana viajasse comigo; por conta de nossas agendas de trabalho tão diversas no momento, ela não poderá ir. Não é difícil prever que a experiência em Portugal será maravilhosa, mas tenho certeza que restará pedindo completude em algum lugar da sua ocorrência.
A selfie de alguém, capturada com o fundo coadjuvante de um lugar bacana, ou não, pode ser um baita tesouro, como aquelas fotos três por quatro dos entes queridos que nossos pais ou avós carregavam na carteira, no ímã preso do painel do carro, no tempo em que os carros tinham painéis metálicos, naquela moldura onde estava escrito Não corra, papai – algo de uma potencialidade lúdica tremenda. A força dos objetos e das situações depende do valor que atribuímos a elas, no olhar estão as portas secretas para fora do corriqueiro.
Tempo atrás postei no meu perfil do Twitter uma selfie que Morgana fez em Frankfurt enquanto eu viajava de trem para Stuttgart para uma leitura de trechos do romance “Habitante irreal” na Biblioteca Pública de Stuttgart (considerada a mais moderna da Europa) no início de setembro do ano passado, uma foto que eu não canso de olhar. A solidão não é exatamente ruim quando se sabe, ou se supõe, que se está num atravessar a piscina por baixo da água, esperando enquanto se movimenta braços e pernas a chance de chegar ao outro extremo e voltar a respirar.
É bem possível que eu cometa uma selfie com a câmera do meu celular (às vezes é impossível resistir e não solar), mas a emoção de reencontrar Portugal depois de décadas é tanta que talvez eu só queira respirar Portugal e mais nada; como dizem belissimamente os portugueses: a ver.
Um dia é possível que haja um chip para ser implantado em nosso cérebro permitindo que compartilhemos em tempo real com a outra pessoa, a que se interessa pelas nossas banalidades de viajante solo, solar, as experiências maravilhosas vividas, e isso cause forte impressão de plenitude – veja-se o cataclismo recente provocado pelo filme Her, do Spike Jonze, veja-se aonde podemos chegar com tanta projeção –, e não haja mais tristeza, a que sempre vaza das entrelinhas de uma selfie (esqueça essa baboseira de selfie coletiva), que haja apenas esperança de Oz, quem sabe; mas ainda assim sempre faltará alguém para beliscar de leve o seu bracinho enquanto você atravessa a piscina, dizendo para si mesmo: cheguei até aqui, por baixo da água sem respirar.
Paulo Scott nasceu em Porto Alegre, em 1966, e mora no Rio de Janeiro.
É autor dos romances Voláteis (Objetiva) e Habitante irreal (Alfaguara), do volume de contos Ainda orangotangos (Bertrand Brasil) e do livro de poemas A timidez do monstro (Objetiva). Seu romance da coleção Amores Expressos, Ithaca Road, foi lançado em maio de 2013.
Fonte: Blog da Companhia
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