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A data, pelo menos no Brasil, passou sem grandes celebrações. A quarta-feira (13/nov) marcou os 100 anos do lançamento de No caminho de Swann, o livro que inaugurou uma das obras mais importantes — e menos lidas — da literatura mundial. Não porque os temas de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, tenham envelhecido, mas porque pouca gente se dispõe a atravessar seus sete volumes — quase quatro mil páginas na edição brasileira, da Globo Livros. Mesmo sem festa, o romance de Proust vive um momento importante no país. A Globo Livros terminou, há poucos meses, a reedição da obra, com traduções de Mario Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Além das novas edições no mercado, “No caminho de Swann” vai ganhar mais uma versão brasileira, traduzida pelo jornalista Mario Sergio Conti, colunista do GLOBO. A Companhia das Letras planeja lançá-la no ano que vem. Lá fora, a Sotheby’s vai leiloar, dia 26, em Paris, a carta em que André Gide, um dos quatro editores que rejeitaram o manuscrito de Proust na época, se diz arrependido do erro.

Nunca é fácil resumir sobre o que o livro trata. Grosso modo, “Em busca do tempo perdido” narra a vida de Marcel — o protagonista, cujo nome só é citado duas vezes no romance — em seu percurso para se tornar escritor. Ao longo da história, Proust apresenta reflexões sobre o amor, a arte, a passagem do tempo, a homossexualidade. Uma de suas ideias mais originais, porém, é a distinção entre memória voluntária e involuntária. Para Proust, não é possível acessar o próprio passado por meio da inteligência. Só a memória involuntária, disparada por algum elemento, é capaz de recuperá-lo. Daí a cena clássica da madeleine. Ao mergulhar o doce numa xícara de chá e prová-lo, o protagonista relembra toda a sua infância na cidade fictícia de Combray.

— O romance tem uma energia rejuvenescedora. Proust nos revela muito sobre a experiência humana. Apesar de ter 100 anos, é uma obra muito moderna. Quem lê sempre reconhece, nos personagens, pessoas do seu convívio ou a si mesmo — diz William C. Carter, autor de “Marcel Proust — A life”, definido pelo crítico literário Harold Bloom como o “biógrafo definitivo” do escritor francês.

O biógrafo lembra que Proust nunca precisou trabalhar, porque vinha de família rica: seu pai era professor universitário, e a família de sua mãe era de banqueiros. Depois da morte dos pais, acometido pela asma, Proust se trancou no apartamento da família, onde escreveu o grande clássico. As paredes eram cobertas de cortiça, para evitar a propagação de ruídos.

A fama de “obra difícil”, como lembra a escritora Lydia Davis, vencedora do Man Booker International deste ano e tradutora de “No caminho de Swann” (leia entrevista ao lado), explica a relutância de alguns leitores em embarcar em Proust. Um dos motivos vem do fato de ele ter escrito períodos longos, embora a fama nem sempre seja justificada. Em 1975, no livro “La phrase de Proust”, o crítico Jean Milly investigou a musicalidade da frase proustiana, apontando ritmos, aliterações, número de sílabas métricas etc. E também contou as frases de “No caminho de Swann”, descobrindo que quase 40% delas são curtas, ocupando de uma a cinco linhas. Menos de um quarto têm dez linhas ou mais. Em “A prisioneira”, porém, como diz Étienne Brunet em “Le vocabulaire de Proust” (1983), há um período com 400 palavras — o equivalente a quatro metros de comprimento, se alinhadas.

O problema de Proust, para muitas outras pessoas, não é o tamanho dos períodos, mas a sintaxe, a mudança constante de direção da frase. Cada vez que ela muda, você deixa um pensamento em suspenso, o que exige concentração. Esse exercício de pensamento se tornou incompatível com a fragmentação do século XXI — diz o filósofo e ensaísta Francisco Bosco, também colunista do GLOBO, que tentou ler os livros três vezes antes de engatar na leitura.

As editoras que Proust procurou em 1913 também acharam difícil. Quatro recusaram o original e entraram para a lista folclórica dos editores que não perceberam o valor de um clássico. Ao primeiro deles, Proust propôs um livro em dois volumes: “O tempo perdido” (depois rebatizado de “No caminho de Swann”) e “O tempo reencontrado”. Ambos receberiam o título de “As intermitências do coração”. Depois, o escritor procurou a Nouvelle Revue Française (NRF) — hoje Gallimard. Deu na mesma. André Gide, um dos editores, diz na carta que vai a leilão que a rejeição seria um dos seus “mais amargos arrependimentos”. Proust só conseguiu publicar na quinta editora (Grasset) — e, mesmo assim, só depois de bancar a impressão e prometer dividir o lucro das vendas.

Revisão obsessiva

Para além da curiosidade, o episódio ajuda a lembrar que Proust escreveu o primeiro e o último volumes antes. Só depois foi incluindo os demais. Ele reescrevia e anotava sobre seus originais obsessivamente. Deixou 75 cadernos, que um grupo de pesquisadores franceses, japoneses e brasileiros se esforça, há dez anos, para transcrever e publicar. Prova de que “Em busca do tempo perdido” é uma obra inacabada. Ninguém sabe o que Proust teria mudado se estivesse vivo quando os três últimos volumes (“A prisioneira”, “A fugitiva” e “O tempo redescoberto”) foram publicados, respectivamente em 1923, 1925 e 1927.

Não à toa, na década de 1970 os sete romances foram revistos, a partir de manuscritos do escritor, que comparava seu ciclo de romances a uma catedral gótica, erguida até os céus. Diante dessas mudanças, a Globo Livros precisou reeditar a obra — com base na edição de 1970. A tradução de “No caminho de Swann”, por exemplo, era de 1948, antes de a edição definitiva ser estabelecida na França. Para realizar o trabalho, foi chamado Guilherme Ignácio da Silva, o primeiro brasileiro a transcrever um dos cadernos de Proust, em 1998.

Uma das melhores dicas para quem quer ler o livro vem de André Gide, que aconselha a leitura em voz alta. Na faculdade, fazemos exercícios de leitura em voz alta do original e na tradução brasileira — diz Da Silva, que também é professor de língua e literatura francesas na Unifesp.

Que a “Recherche”, como dizem os franceses, ainda seja discutida, é prova de um dos pensamentos de Proust. Só pela imaginação e pela lembrança o passado ganha significado. Para ele, que morreu em 1922, aos 51 anos, ao recriar a realidade por meio de sua visão particular, o artista consegue vencer o tempo.

Proust em outras mídias

QUADRINHOS: A editora Zahar publicou no Brasil uma adaptação de “Em busca…”, também em sete volumes, feita pelo artista Stéphane Heut. Os quadrinhos foram elogiados na França como uma boa introdução à obra do escritor. Já a L&PM prepara, para junho de 2014, uma adaptação em mangá da obra de Proust.

ANIMAÇÃO: Absorvido pela cultura pop, Proust virou referência até no desenho “Ratatouille”, da Pixar. A cena em que o crítico de gastronomia prova a comida e se lembra da infância é uma referência direta à passagem da madeleine.

CINEMA: Em 1984, Volker Schlondörff filmou “Um amor de Swann”, trecho do primeiro volume. Raúl Ruiz, em 1999, adaptou “O tempo redescoberto”, com Catherine Deneuve e Marcello Mazzarella (foto). Em 2000, a belga Chantal Akerman filmou o sexto livro, “A fugitiva”.

 

Fonte: O Globo