Malala Yousafzai (Foto: Christopher Furlong)
“Eu Sou Malala” narra a história da ativista e de sua família exilada pelo terrorismo, desde a infância até os detalhes de uma vida dominada pelos talebans. O lançamento do livro da adolescente foi cancelado no Paquistão na terça-feira (28/janeiro), após pressão do governo local, segundo informação das agências de notícias.
Nascida em 1997, em Mingora, Malala Yousafzai é a mais jovem vencedora da história do prêmio Sakharov de Liberdade de Expressão e também a mais jovem a ser indicada ao Prêmio Nobel da Paz. A biografia foi escrita em parceria com a jornalista britânica Christina Lamb e apresenta um universo religioso e cultural muitas vezes incompreendido pelo Ocidente.
Abaixo, leia um trecho.
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1. Nasce uma menina
No dia em que nasci, as pessoas da nossa aldeia tiveram pena de minha mãe, e ninguém deu os parabéns a meu pai. Vim ao mundo durante a madrugada, quando a última estrela se apaga. Nós, pachtuns, consideramos esse um sinal auspicioso. Meu pai não tinha dinheiro para o hospital ou para uma parteira; então uma vizinha ajudou minha mãe. O primeiro bebê de meus pais foi natimorto, mas eu vim ao mundo chorando e dando pontapés. Nasci menina num lugar onde rifles são disparados em comemoração a um filho, ao passo que as filhas são escondidas atrás de cortinas, sendo seu papel na vida apenas fazer comida e procriar.
Para a maioria dos pachtuns, o dia em que nasce uma menina é considerado sombrio. O primo de meu pai, Jehan Sher Khan Yousafzai, foi um dos poucos a nos visitar para celebrar meu nascimento e até mesmo nos deu uma boa soma em dinheiro. Levou uma grande árvore genealógica que remontava até meu trisavô, e que mostrava apenas as linhas de descendência masculina. Meu pai, Ziauddin, é diferente da maior parte dos homens pachtuns.
Pegou a árvore e riscou uma linha a partir de seu nome, no formato de um pirulito. Ao fim da linha escreveu “Malala”. O primo riu, atônito. Meu pai não se importou. Disse que olhou nos meus olhos assim que nasci e se apaixonou. Comentou com as pessoas: “Sei que há algo diferente nessa criança”. Também pediu aos amigos para jogar frutas secas, doces e moedas em meu berço, algo reservado somente aos meninos.
Meu nome foi escolhido em homenagem a Malalai de Maiwand, a maior heroína do Afeganistão. Os pachtuns são um povo orgulhoso, composto de muitas tribos, dividido entre o Paquistão e o Afeganistão. Vivemos como há séculos, seguindo um código chamado Pachtunwali, que nos obriga a oferecer hospitalidade a todos e segundo o qual o valor mais importante é nang, a honra. A pior coisa que pode acontecer a um pachtum é a desonra. A vergonha é algo terrível para um homem pachtum. Temos um ditado: “Sem honra, o mundo não vale nada”. Lutamos e travamos tantas infindáveis disputas internas que nossa palavra para primo – tarbur – é a mesma que usamos para inimigo. Mas sempre nos unimos contra forasteiros que tentam conquistar nossas terras. Todas as crianças pachtuns crescem ouvindo a história de como Malalai inspirou o Exército afegão a derrotar o britânico na Segunda Guerra Anglo-Afegã, em 1880.
Malalai era filha de um pastor de Maiwand, pequena cidade de planícies empoeiradas a oeste de Kandahar. Quando tinha dezessete anos, seu pai e seu noivo se juntaram às forças que lutavam para pôr fim à ocupação britânica. Malalai foi para o campo de batalha com outras mulheres da aldeia, para cuidar dos feridos e levar-lhes água. Então viu que os afegãos estavam perdendo a luta e, quando o porta-bandeira caiu, ergueu no ar seu véu branco e marchou no campo, diante das tropas. “Jovem amor!”, cantou. “Se você não perecer na batalha de Maiwand, então, por Deus, alguém o está poupando como sinal de vergonha.”
Malalai foi morta pelos britânicos, mas suas palavras e sua coragem inspiraram os homens a virar a batalha. Eles destruíram uma brigada inteira – uma das piores derrotas da história do Exército britânico. Os afegãos construíram no centro de Cabul um monumento à vitória de Maiwand. Mais tarde, ao ler alguns livros de Sherlock Holmes, ri ao ver que foi nessa batalha que o dr. Watson se feriu antes de se tornar parceiro do grande detetive. Malalai é a Joana d’Arc dos pachtuns. Muitas escolas de meninas no Afeganistão têm o nome dela. Mas meu avô, que era professor de teologia e imã da aldeia, não gostou que meu pai me desse esse nome. “É um nome triste”, disse. “Significa luto, sofrimento.”Quando eu era bebê, meu pai cantava uma música escrita pelo famoso poeta Rahmat Shah Sayel, de Peshawar. A última estrofe é assim:
_Oh, Malala de Maiwand,_
_Ergue-te mais uma vez para fazer os pachtuns entenderem o significado da honra,_
_Tuas palavras poéticas movem mundos,_
Eu imploro, ergue-te mais uma vez.
Meu pai contava a história de Malalai a toda pessoa que viesse à nossa casa. Eu a adorava, assim como amava ouvir as músicas que ele cantava para mim e a maneira como meu nome flutuava ao vento quando alguém o chamava.
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EU SOU MALALA
AUTOR Christina Lamb e Malala Yousafzai
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 27,50
ONDE Livraria da Folha
Fonte: Folha de S. Paulo
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