E A MORTE SURPREENDEU a todos com um rosto contundente: para espanto dos cientistas, dona Amélia estava mumificada, com cabelo, pele, cílios, unhas e vários órgãos internos preservados. Descrita como mulher de grande beleza e parente do ex-imperador francês Napoleão Bonaparte, ela casou-se por contrato com dom Pedro I, em 1829 – tinha 17 anos, e ele, 31. Viveu menos de dois anos no Brasil, antes de acompanhar o marido no regresso à Europa, em 1831. “Em Portugal do século 19, os médicos aplicavam um tratamento apenas para inibir a decomposição até o fim dos funerais, que duravam três dias. Mas o embalsamamento dela perdurou”, diz Valdirene. Além disso, um novo tratamento foi dado ao corpo para seu envio ao Brasil, em 1982 – ao abrir a urna agora, os cientistas puderam sentir o aroma de cânfora, uma das substâncias usadas.
Dona Amélia mumificada @ Foto: Maurício de Paiva
Em operações secretas na calada da noite, os três corpos reais foram levados até a Faculdade de Medicina da USP para exames de imagem. Com as tomografias, especialistas puderam examinar tudo em separado – o caixão, o corpo e as vestes. Descobriu-se que o vestido e a faixa com as quais dona Leopoldina foi enterrada são os mesmos que usou na coroação de dom Pedro, registrada em um famoso quadro do pintor neoclássico francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil entre 1816 e 1831. “O vestido, para nós, surgiu como se fosse a carteira de identidade da imperatriz”, diz Carlos Augusto Pasqualucci, médico e professor de patologia.
Técnicas de física atômica e nuclear, como a fluorescência de raios X, permitiram, pela primeira vez no Brasil, analisar contaminações em remanescentes humanos e materiais associados. “Em dom Pedro, havia altas concentrações de chumbo, provenientes do caixão, além de cobre e zinco, possivelmente de objetos de vestimenta, como botões e esporas”, diz Márcia Rizzutto, do Instituto de Física da USP. Um acelerador de partículas foi usado para identificar que as medalhas do imperador são feitas de uma liga de ouro, prata e cobre; a tecnologia é chamada de Pixe (sigla, em inglês, para “emissão induzida de radiação X por partículas”). “São métodos não destrutivos de análises, usados para aferir a autenticidade em obras de arte, como pinturas. No nosso caso, serão importantes para a preservação dos artefatos recolhidos”, completa Valdirene.
De cabelo curto, olhar melancólico e gestos suaves, a arqueóloga preserva convicções monarquistas e prefere não discutir se dom Pedro é herói ou vilão, como polemizam certas biografias. Mais lhe interessa a figura humana. Nascido em Portugal e criado no Brasil, o jovem herdeiro da casa real de Bragança não desfrutou da mesma formação fina de sua esposa Leopoldina, uma Habsburgo, das dinastias mais nobres da Europa. “Ele não teve educação para ser um monarca. Muito jovem, pegou nas mãos a responsabilidade de construir uma nação, sem estrutura emocional e intelectual para isso. E teve o azar de perder cedo Leopoldina, que havia sido preparada para governar e dava todo suporte ao marido”, diz.
Alçado à posição de príncipe regente em um período político turbulento, após a volta de dom João VI a Portugal, em 1821, o herdeiro do trono português – cujo nome completo é Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon – incorporou o espírito liberal que culminou na independência do Brasil, enfrentando a resistência de tropas leais a Portugal e os movimentos de secessão em regiões isoladas de um país que nascia enorme, pobre, analfabeto, escravocrata e refém da economia agrária do latifúndio. Formou exércitos, batalhou pela integridade territorial, promulgou duas Constituições ousadas – a primeira, de 1824, permitia, por exemplo, liberdade religiosa – e defendeu sua causa ideológica ante os absolutistas, caso de seu irmão dom Miguel, contra o qual decidiu combater em Portugal, abdicando do trono no Brasil em abril de 1831.
Era baixo para nossos padrões: entre 1,67 e 1,73 metro, atestam os estudos na cripta. Gostava de exercício físico, caça e marcenaria, mas se aventurou na música; compôs até missas, diz Valdirene. A equitação foi um hobby e, em parte, seu algoz. A tomografia apontou fraturas em quatro costelas do lado esquerdo, com sequelas graves em um dos pulmões, provenientes de acidentes de cavalo – um deles de carruagem, quando estava na companhia de dona Amélia e da filha Maria II, em 1829. As lesões, cogita-se, podem ter agravado a tuberculose, que o vitimou, aos 36 anos, em 1834, em Portugal.
Ao abdicar da coroa três anos antes, dom Pedro não desfrutava do mesmo prestígio popular, pressionado por problemas políticos e condenado por sua buliçosa vida sentimental: teve 18 filhos com suas duas esposas e várias amantes – a mais famosa delas, Domitila de Castro Campo e Melo, a marquesa de Santos. Nenhuma insígnia brasileira estava entre as cinco medalhas achadas junto aos restos, tampouco suas vestes fazem referência ao império dos trópicos que ajudou a conceber. O primeiro imperador do Brasil foi enterrado como dom Pedro IV de Portugal, com botas de cavalaria, abotoaduras, esporas e botões da farda típicos de um general da nação ibérica. “Ele não queria deixar o Brasil. Seu temperamento não era de português, mas de brasileiro. Inclusive no defeito de ser mulherengo”, diz Valdirene.
Ela admite que Dom Pedro tinha um histórico de violência doméstica – tolerável na sociedade patriarcal da época –, mas os resultados dos exames reforçam, agora, a avaliação de que não houve atentado contra a vida da própria mulher. A tomografia de dona Leopoldina não revelou marcas de fratura. A arcada dentária estava preservada; apenas um dente não foi localizado. “A imperatriz atravessava um momento psicológico ruim. Estava triste pelo tratamento dado pelo marido à marquesa de Santos. A traição tornouse pública. Além disso, ela teve gestações sucessivas, e nunca se adaptou ao calor do Rio de Janeiro. Estava deprimida, grávida e fragilizada”, diz.
As datas também elucidam, argumenta a arqueóloga, que investigou documentos do Museu Imperial, em Petrópolis. Dom Pedro saiu do Rio em viagem à convulsionada província de Cisplatina (hoje Uruguai) em 23 de novembro de 1826, mas a esposa só teve a gravidez interrompida em 2 de dezembro. Com um pontapé ou outra agressão, ela abortaria em questão de horas, não nove dias depois. “O aborto ocasionou febre alta e convulsão, até resultar em óbito, no dia 11. Qual a causa exata? Se o corpo estivesse tão preservado quanto o de dona Amélia, teríamos mais recursos para saber”, analisa. “Então, o que quero afirmar é: a morte dela não foi ocasionada por nenhum ato de violência. Isso não houve.”
A ARQUEOLOGIA, AOS POUCOS, revela os mistérios de São Paulo e seus personagens. Mas a história oficial nunca é o limite. Mesmo os primeiros colonizadores da cidade, no século 16, se valeram de estruturas herdadas de ocupações passadas. Os vales em que correm os atuais rios Tietê e Pinheiros eram ocupados por aldeias dispersas, conectadas a uma rede de caminhos. “Algumas de nossas ruas são trilhas que os índios abriram e das quais os portugueses se apropriaram”, conta Paula Nishida.
A vila, fundada por padres jesuítas em 1554, galgou importância por sua posição geográfica estratégica, seja por estar na rota de mineradores, seja pelo controle de vias fluviais. No século 19, foi convertida em capital de província e ganhou sua primeira Faculdade de Direito, a do largo São Francisco, o que contribuiu para a afirmação política e intelectual da cidade. Com a cafeicultura, que trouxe milhares de imigrantes para trabalhar nas lavouras e, depois, no emergente parque industrial, a população deu um salto impressionante: de 31,3 mil em 1872 para 580 mil em 1920 e mais de 2 milhões na década de 1950.
Em certos bairros, essa expansão súbita está registrada no subsolo, em camadas de ocupações recentes que se sobrepõem rasas e pouco estudadas. É fácil distinguir isso no projeto batizado de Reconversão Urbana do Largo da Batata e Entorno, que há três anos reconfigura um trecho de 800 mil metros quadrados no bairro de Pinheiros. A obra pública prevê melhorias no sistema viário, abertura de largos e recuperação de calçadas para o fluxo de pedestres, rumo à estação do metrô inaugurada em 2011.
C O N T I N U A . . .
Fonte: National Geographic Brasil
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