Depois de passar oito anos traduzindo para o chinês o primeiro terço de “Finnegan’s Wake”, romance de James Joyce célebre por ser de compreensão tão difícil, Dai Congrong aceitou que era um trabalho feito por amor, e não por dinheiro.
O texto do livro desafia abertamente as convenções gramaticais e é repleto de trocadilhos plurilíngues. O livro começa com: “riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs” (“riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de recirculação devolta a Howth Castle Ecercanias”, em tradução de Augusto de Campos).
Por isso mesmo a professora de 41 anos de idade da Universidade Fudan, em Xangai, reagiu com incredulidade quando, depois de chegar às livrarias no mês passado, a tradução virou inesperado sucesso de vendas na China.
Promovido numa campanha ampla em outdoors, o primeiro volume de “Fennigen de Shouling Ye” esgotou sua primeira tiragem, de 8.000 exemplares, e chegou ao segundo lugar de uma lista prestigiosa dos livros mais vendidos em Xangai, perdendo apenas para uma biografia de Deng Xiaoping.
Vendas de 30 mil exemplares de um livro são vistas como “motivo de comemoração”, segundo a editora chinesa Gray Tan, de modo que 8.000 exemplares vendidos em um mês fazem de James Joyce um sucesso enorme. Ian McEwan, por exemplo, é considerado muito bom em tradução chinesa, mas foram impressas apenas 5.000 cópias de “Reparação”.
“Fiquei e ainda estou espantada”, comenta Dai. “Achei que meus leitores seriam acadêmicos e escritores. Não imaginei que o livro tivesse recepção tão ampla.”
Dai conta que sua apreciação por “Ulysses” começou quando ela era estudante de doutorado na Universidade de Nanjing, no final dos anos 1990; o livro ganhou sua primeira tradução ao chinês em 1995. Incentivada por seu orientador acadêmico, em 2004 ela decidiu assumir a tradução de “Finnegan’s Wake”; dois anos mais tarde, assinou um contrato de tradução com uma agência editorial.
Reflexão
James Joyce chegou à China recentemente. Sob Mao Tse-tung, sua obra era rejeitada, vista como literatura ocidental burguesa; “Retrato do Artista Quando Jovem” só foi traduzido ao chinês em 1975, um ano antes da morte de Mao. E não foi por falta de demanda. Quando a versão chinesa de “Ulysses” chegou às livrarias, quase 20 anos mais tarde, 85 mil exemplares foram vendidos em pouquíssimo tempo.
Dai diz que os leitores chineses apreciam as reflexões de Joyce sobre a natureza cíclica da história, os relacionamentos entre seus personagens masculinos e femininos e o simples desafio de interpretar sua prosa. Ela descreve a tradução do famoso estilo narrativo de Joyce, seguindo o fluxo de consciência, como um desafio enorme.
“As coisas que eu perdi são principalmente as frases, porque as frases de Joyce são tão diferentes das comuns”, diz a tradutora, explicando que, em muitos casos, ela as decompôs em orações mais curtas e simples. Se não o tivesse feito, o leitor médio “pensaria que era uma tradução errada. Por isso minha tradução é mais clara que o livro original.”
Mesmo assim, ela se esforçou ao máximo para manter a maior fidelidade possível ao original. “Por exemplo, há uma frase em ‘Finnegan’s Wake’ sobre ‘mão gaga’, que pode significar trêmula. Se eu a traduzisse como ‘mão trêmula’, seria ok –seria uma boa frase em chinês. Mas eu a traduzi como ‘mão gaga’. A gramática chinesa não permite que se unam ‘gagueira’ e ‘mão’, mas eu fiz isso, assim mesmo.”
Inicialmente, Dai sentiu-se intimidada com a escala do empreendimento –a tradução francesa de “Finnegan’s Wake” levou 30 anos para ser concluída–, e houve momentos em que pensou em desistir. “É uma espécie de tortura”, ela comentou. “Na China, a tradução não é vista como uma realização acadêmica. Preciso publicar primeiro e depois dedicar meu próprio tempo à tradução.”
Ela se desentendeu com o marido muitas vezes (ele queria que ela fosse dormir, e ela queria ficar acordada e traduzir) e teve dificuldade enorme em conciliar o projeto com sua vida familiar. “Meu corpo sofreu por trabalhar, trabalhar todas as noites. Fiquei com a aparência mais velha do que deveria. Meus olhos escureceram, e minha pele também não estava boa.”
Seu contrato cobre os dois terços do livro que ainda faltam, e, apesar das muitas horas de trabalho, Dai não pensa em desistir. “‘Finnegan’s Wake’ é um livro grandioso. Depois de lê-lo, passei a pensar: ‘Este (outro) escritor usou uma frase tradicional demais, demasiado simples. Se ele pudesse fazer mais experimentos com suas frases, poderia expressar coisas diferentes.”
“‘Finnegan’s Wake’ me fez pensar que James Joyce é um escritor que nunca se satisfazia com o que já tinha realizado”, ela prossegue. “Sua energia é muito forte.”
Isso é algo que Joyce e ela têm em comum.
Fonte: Folha de São Paulo
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