por Daniel Benevides
Pilar del Río (Foto: Patricia de Melo Moreira/AFP)
Pilar não poderia ser nome mais apropriado. Magra, alta, elegante, é ela quem sustenta, com disposição inabalável, a Fundação Saramago, em Lisboa. Antes, a espanhola de sobrenome Del Río (também apropriado, pois é muito fluente na fala e no raciocínio, rápido e certeiro como uma flecha) era o apoio imprescindível do marido, José, escritor de obras-primas, como Ensaio sobre a Cegueira e tantas outras, Prêmio Nobel em 1998.
Somados o senso de humor, a inteligência e a integridade de ambos, formavam um casal mítico, de um glamour romântico-intelectual comparável a Sartre e Beauvoir. Um casal de filme. Tanto que realmente o foram, pelas mãos sensíveis do diretor português Miguel Gonçalves Mendes. José e Pilar mostra a intimidade e o cotidiano de ambos em um período de dois anos, entre viagens e o refúgio na ilha de Lanzarote, para onde se mudaram em 1993.
“Eu quis assassinar o Miguel”, diz Pilar, ao lembrar uma das cenas em que ela não sabia que estava sendo filmada. Famosa pela veemência com que dá suas opiniões (mesmo brincando), Pilar sempre militou pelos oprimidos: seduzida pela igreja progressista, foi monja teresiana ao mesmo tempo que lia Marx. Lutou contra a ditadura de Franco em programas de rádio e TV, tendo participado ativamente do período de transição democrática na Espanha. Feminista ferrenha, ecologista e vegetariana, também defende com forte convicção causas polêmicas, como a legalização das drogas e a eutanásia.
Dividia as convicções de esquerda com Saramago, cuidava de sua agenda, montou sua biblioteca e traduzia suas obras para o espanhol. Eram diferentes em muitos aspectos, mas não no essencial; quando Saramago falava da mulher, poderia estar definindo-se a si mesmo: “A Pilar tem uma consciência muito clara sobre o mundo em que vive. (…) A injustiça, a indignidade, a falta de escrúpulos, a hipocrisia põem-na completamente fora de si”.
Ao que completava, com a convicção de eterno apaixonado: “Tenho muitas razões para acreditar que o grande acontecimento da minha vida foi tê-la conhecido”.
De fato, quem conhece María del Pilar del Río Sánchez, nascida em Granada em 1950, fica impressionado com sua força. É assim por onde passa nas dezenas de seminários, feiras e conferências a que vai todo ano para divulgar a obra e as ideias de Saramago. E foi assim na Fliporto, em Olinda, onde ela conversou generosamente com a Brasileiros.
Brasileiros – Sabendo tudo o que você faz e sempre com tão boa disposição, fica inevitável perguntar: de onde tira tanta energia?
Pilar Del Río – É o meu jeito, sou assim, não paro nunca. Sou a mais velha de 15 irmãos, então sou muito ativa desde pequena. E detesto essa coisa que muita gente faz de dizer “não sei…”. Como não sabe? Se você quer algo da vida tem de saber tudo o que se passa a seu redor. Conheço jovens que dizem estar cansados com 20 anos… Como podem? Precisam dar a volta ao mundo três vezes para ficarem cansados. Durmo quatro horas por noite. É o suficiente.
Brasileiros – Você não é muito exigente consigo mesma?
P.D.R. – Sou e, ainda assim, não consigo ser a pessoa que eu deveria ser.
Brasileiros – E quem você deveria ser?
P.D.R. – Uma pessoa mais capaz, mais completa, mais útil. Não consigo. Tenho uma responsabilidade e um trabalho muito grandes, de ajudar a abrir portas para a obra de Saramago. Mas mesmo com todo o tempo que dedico à Fundação, sinto que meu papel é ínfimo. Meu grande pavor é que a dimensão fabulosa de Saramago – e não digo isso por adoração, mas por acreditar mesmo que sua obra é universal, admirável e necessária – se perca ou fique relegada a um espaço pequeno.
Brasileiros – E o que, para você, torna a obra de Saramago tão necessária?
P.D.R. – Acho que Saramago tinha um grande respeito pelo leitor, de forma que quem o lê se sente um ser humano mais inteligente.
Ao fundo, a biblioteca da Fundação Saramago
Brasileiros – Não foi exatamente isso que você disse para ele quando o conheceu?
P.D.R. – Sim, e é verdade, ele desperta ideias e sensações que te fazem parar e dizer: por que não me ocorreu isso antes? Em sua obra está construída a possibilidade de um mundo que não precisa de poder e riqueza, um mundo que se faz simplesmente com honestidade e inteligência. Mas abdicamos disso todos os dias e não nos damos conta. Esvaziamos o edifício democrático. Nós, cidadãos, somos muito frágeis. E não nos damos conta de que se os governos são corruptos, é porque a sociedade é corrupta. Se um governo é indiferente, é porque a sociedade é indiferente. Os governos nascem da sociedade, não vêm de Marte
Brasileiros – Muita gente diz não ver mais distinção entre esquerda e direita, como é isso para você?
P.D.R. – Acho que as políticas econômicas de governos de esquerda e direita não se distinguem muito. Mas quero que haja governos de esquerda. Para mim, há muita diferença, por exemplo, que no Chile governe a Bachelet, e não o Piñera. Na Espanha, não é o mesmo para mim que governe o Partido Socialista ou o Partido Popular. Para os radicais de esquerda, é tudo a mesma merda. Para mim, não. Se as políticas econômicas não são distintas, há diferenças importantes nas políticas sociais.
Brasileiros – Conta um pouco da sua trajetória em rádio e TV.
P.D.R. – Comecei no rádio, e logo fui para a TV, sempre colaborando com a imprensa escrita. Era basicamente jornalismo político disfarçado de informação cultural, para enganar a censura. Fui crescendo até ganhar espaço nacional. Todas as ocasiões eram boas para colocar em evidência que existiam outras pessoas além dos franquistas, e outras formas de entender a vida. Fiz algumas reportagens que hoje me surpreendem: era ousada e não sabia…
Brasileiros – E fez também grandes entrevistas. Lembra de algumas?
P.D.R. – Entrevistei pessoas que nem podiam crer que existissem. Claro, sabia quem eram, mas descobria nelas mundos impressionantes. A verdade é que éramos militantes de uma forma de estar no mundo, tanto nós jornalistas, como artistas, políticos na clandestinidade, escritores… Sentíamos que estávamos criando um mundo distinto. Não havia objetividade jornalística, se tratava de abrir caminhos. Lembro da entrevista com (Miguel Ángel) Astúrias em Sevilha, e de haver contado como tinha sido a seu filho, que estava na guerrilha. Lembro de ter tido problemas por dizer que Neruda era comunista; lembro da gentileza de um escritor que colocou seu paletó em meus ombros e disse, com delicadeza, que minha blusa estava manchada com leite; lembro de subir ao trem que trazia Rafael Alberti do exílio, convidada pelo sindicato de ferroviários… Enfim, lembro de mil batalhas de quem já tem 40 anos de profissão. E nomes preciosos, como o escritor Manuel Vázquez Montalbán, cuja morte prematura dói todo dia. E claro, entrevistei escritores universais e magníficos como José Saramago e políticos interessantíssimos, de esquerda e direita, como Aldo Moro…
Brasileiros – Você falou também com admiração de Pilar Manjón e uma comandante zapatista…
P.D.R. – A comandante zapatista e Pilar Manjón, mãe de um jovem assassinado em um ato terrorista, falaram aos parlamentos do México e da Espanha, e as duas foram deslumbrantes, fizeram emudecer seus países, falaram com emoção e simplicidade dos assuntos mais importantes. Deram lições de dignidade, que nem quero nem posso esquecer nunca. Tampouco a alguns políticos da transição espanhola que entrevistei e dos que, em certos casos – Adolfo Suárez, Santiago Carrillo –, recebi confidências extraordinárias, como, por exemplo, o que intimamente haviam sentido diante da tentativa de golpe de Estado, ou quando o Partido Comunista foi legalizado. Creio que essas confidências justificam uma vida de jornalista.
Brasileiros – Lembra do período de monja teresiana? Do “ver, ouvir e não calar”? Como era a sua atuação?
P.D.R. – Fui teresiana porque sentia a urgência de ser útil. Conheci o funcionamento da Igreja, vivi o Vaticano II com expectativa que não correspondia à minha idade, aprendi sobre Santa Teresa, mas um dia me disseram que eu estava empenhada em viver de uma forma que não me deixava feliz. Pode-se dizer que me recomendaram a felicidade; acho que ninguém jamais foi despedido com tanta elegância. Anos mais tarde me dei conta de que tinham razão.
Brasileiros – Você participa ativamente na escolha dos vencedores do Prêmio Saramago?
P.D.R. – Participo como os outros jurados, lendo os livros que chegam e tendo de optar por um, o que é terrível, pois vários merecem o prêmio… Sei o quanto é importante ganhar esse prêmio para os autores, pois dá a eles nome e prestígio. Me dá muito orgulho ver como a literatura em português está se renovando e que José Saramago está por trás disso tudo, com sua generosidade sem limites.
Brasileiros – Em linhas gerais, de que livros é composta a Biblioteca Saramago?
P.D.R. – A biblioteca geral está em Lanzarote, na Espanha. Em Lisboa, só há uma seleção que José Saramago deixou em seu escritório pessoal, quando se construiu o edifício que abrigaria a biblioteca na ilha. Tem de tudo: as leituras de uma vida – ou de duas vidas, porque estão meus livros em espanhol –, os livros que os amigos iam mandando, os comprados com dificuldade por causa da censura ou da falta de recursos e os mais recentes, os utilizados para pesquisa, os dicionários, os livros de História e Filosofia, os de entretenimento, os lidos várias vezes e os que nunca foram abertos… Não é uma biblioteca valiosa do ponto de vista acadêmico, simplesmente está cheia de vida porque José Saramago dizia que cada livro traz dentro de si uma pessoa, portanto é uma reunião de gente, que eu quis preservar assim para que quem a visite ouça as vozes desses autores que nos chamam.
Brasileiros – Você já declarou que escreve para “queimar a página”. É uma mulher de paixões fortes, a quem muitos atribuem qualificativos como firme, veemente, inflexível, corajosa e com senso de humor agudo. Nunca teve momentos em que fraquejou ou viu-se perdida em dúvidas?
P.D.R. – Não passa um dia que eu não tenha dúvidas sobre tudo. E são dúvidas tão profundas que não se podem resolver, eu nem sequer comento com ninguém. A segurança que eu aparento vem de saber que tenho de terminar um projeto que tem a ver com uma cultura, uma língua e um país. E que esse projeto foi encomendado a quem não pertence a essa cultura nem a essa língua – ao país sim, pois pedi a nacionalidade portuguesa. Sei o que é a solidão do corredor de maratona. Quanto ao humor… Sobretudo, rio de mim mesma o dia inteiro. E isso ajuda muito!
Cena do documentário “José e Pilar”
Brasileiros – Para você, não havia diferença entre o Saramago sujeito e sua obra. Como tradutora, você se põe na margem oposta, invisível.
P.D.R. – Que o autor queira ou pretenda ser invisível é algo em que não acredito. Os autores estão sempre presentes em suas obras. Não é que contem suas vidas, muitas vezes anódina, mas são a matéria central de seu trabalho, seja narrando adultérios, viagens à Lua ou desmistificando os livros sagrados. Quem tem de estar invisível, ainda que tenha de entregar-se ao texto 100% é o tradutor, que será sempre um alquimista desconhecido e sofredor, pois sabe que nunca conseguirá transformar ouro em ouro, no máximo em prata…
Brasileiros – E como começou a traduzir Saramago?
P.D.R. – Eu havia traduzido várias edições de Os Cadernos de Lanzarote, conferências, O Conto da Ilha Desconhecida, cartas e teatro. Comecei a traduzir os romances porque o tradutor Basilio Losada teve um problema com a vista, enquanto traduzia Ensaio sobre a Cegueira. E não deixei escapar a ocasião. (Leia comentários sobre as traduções ao lado.)
Brasileiros – Qual, afinal, é a cena do filme José e Pilar que você detesta tanto? A da cozinha?
P.D.R. – Essa cena me dá tanta raiva que não quero nem comentar, mas não é a da cozinha. Tenho raiva de mim mesma de não ter colocado limites… Consequências da liberdade.
Brasileiros – O que espera da Fundação para os próximos anos?
P.D.R. – Fazer com que a sede, a Casa dos Bicos, decole como um foguete. Chegar a todos os leitores do mundo, com os livros de Saramago e também com a revista eletrônica Blimunda, que editamos. Conseguir convencê-los de que ou assumimos nossos deveres como seres humanos ou perderemos os direitos, que temos o dever de exigir os direitos. Quero convencer os investidores do Brasil que apoiar a cultura e o conhecimento é também lucrativo e espero que me chamem. Quero que a Fundação, tanto em Lisboa como a Casa de José Saramago, em Lanzarote, construa pontes. Quero ver, da Fundação, como se espalha a generosidade de José Saramago, que compartilhava tudo.
Fonte: Revista Brasileiros
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