Ilustração do livro ‘Decameron’ (Imagem: Reprodução)

Nos 700 anos do nascimento de Boccaccio, sua obra mais popular, Decameron, ganha duas traduções no Brasil. A primeira, publicada pela Cosac Naify, tem ilustrações delicadas do artista paulistano Alex Cerveny, que também desenhou os ornamentos das dez novelas selecionadas pelo tradutor Maurício Santana Dias, entre as 100 narrativas do Decameron. A segunda, publicada pela L&PM, é uma edição sem ilustrações com nova tradução de Ivone C. Benedetti, especialista na obra de Boccaccio. É a versão integral desse clássico absoluto, escrito entre 1349 e 1351 (ou 53), quando a peste negra devastou a Europa. É também uma tradução feita para fazer rir o leitor brasileiro, segundo a tradutora, da mesma forma como Boccaccio divertiu os leitores florentinos no século 14, compensando-os pela perda de parentes e amigos levados pela epidemia.

Foi exatamente com esse objetivo em mente que Boccaccio reuniu 100 narrativas que exorcizam a peste negra, estabelecendo com sua coleção de histórias – algumas picantes, outras nem tanto – o marco zero da prosa ficcional realista no Ocidente. Como bônus, ele abriu caminho para a liberdade dos renascentistas. O amor espiritualizado da Baixa Idade Média baixava à terra para assumir uma dimensão mais humanista no século 14, quando a comunicação oral, até então predominante, começa a perder terreno para a escrita. Grande parte dessa centena de narrativas veio do meio do povo para o deleite da burguesia mercantil. A perenidade de Decameron, como escreveu a tradutora Ivone C. Benedetti, resultou da “perfeita comunhão entre o escritor e seu público”.

São vários os exemplos de apropriação das narrativas populares, de jovens que se hospedam na casa de um homem e abusam da sua filha à história de Masetto, que se finge de mudo, entra como jardineiro de um convento e vira amante de todas as freiras. Essas histórias são contadas por dez jovens (sete moças de origem nobre e três rapazes) que buscam abrigo nas montanhas, fugindo das cidades dizimadas pela peste. A narrativa de Bocaccio não omite o flagelo. Ao contrário. Ao lado de cenas picarescas como as descritas anteriormente convive o fantasma da praga, da morte, do temor religioso. Ele reconta essas histórias usando a linguagem de seu tempo.

Ilustração do livro ‘Decameron’ (Imagem: Reprodução)

Por fidelidade a ela, Alex Cerveny foi buscar inspiração nos manuscritos que se encontram na Biblioteca Nacional de Paris e na Biblioteca do Estado em Berlim. As duas edições foram usadas como referências para ilustrar a edição parcial do Decameron. A encomenda da Cosac Naify previa intervenções gráficas em todas as páginas. A influência do traço de Boccaccio, que ilustrou a própria obra, é notável em cada uma delas, mas Cerveny avança no tempo e emula também o estilo dos artistas do Renascimento, principalmente Piero della Francesca. Seu retrato do duque de Urbino serve de modelo para o artista brasileiro criar um dos personagens da primeira novela da primeira jornada, que conta como Cepparello engana um padre e é tomado por santo quando morre.

Outras fontes visuais incluem o filme que Pier Paolo Pasolini fez baseado no clássico. O jardineiro Masetto, flagrado pelas freiras em plena ação onanista, é um exemplo. Outro é o trio formado por Peronella, seu amante e o marido. Ela esconde o primeiro num tonel, mente para o marido que o vendeu e o faz entrar dentro dele para examinar seu estado, enquanto o amante se livra das calças e avança sobre ela. Predomina no desenho o mesmo erotismo campesino do filme de Pasolini, que abjurou sua recriação de Boccaccio ao ver a obra consumida pelo público como pornografia.

Nenhuma das 44 ilustrações de Cerveny corre o risco de ser classificada da mesma forma. Elas conservam a inocência das ilustrações dos livros infantis feitas pelo artista, que completa 50 anos de idade e 30 de carreira com uma exposição de pinturas e desenhos na Casa Triângulo leia abaixo). O exemplo máximo desse segmento literário dedicado às crianças é o conjunto de ilustrações produzidas para Pinóquio, o clássico de Collodi, também publicado pela Cosac Naify.

Ao contrário dos desenhos de Pinóquio, monocromáticos, os de Decameron são multicoloridos. Para o primeiro, Cerveny pesquisou uma técnica da gravura usada no século 19, o cliché verre (clichê em vidro), em que o artista chamusca uma placa de vidro com uma vela e desenha sobre a superfície, como se fosse um negativo fotográfico. Em Decameron, ele dispensou instrumentos e confiou na técnica pessoal. Fez bem.

 

 Fonte: Estadão.com.br