Por Emilio Fraia

sergio(Imagem: Sergio Aragonés @ Revista Mad)

Na época em que registrava minhas eletrizantes atividades diárias numa agendinha com adesivos de surfwear (a saber: “acordei, tomei café, vi televisão, joguei videogame, jantei e dormi”), eu tinha duas leituras prediletas: a revista Mad e a Seleções do Reader’s Digest.

Ao contrário da Globo Ciência cuja assinatura pedi para o meu pai e a revista bateu à nossa porta apenas duas ou três vezes, a Seleções nós recebemos pelo resto de nossas vidas, mesmo depois de a assinatura expirar, e de ter sido cancelada, e de ninguém saber ao certo se chegou a ter assinado a revista algum dia. Mas ok. O fato é que durante anos fizemos parte do seletíssimo grupo que travava contato mensal com histórias como a do avô que lutou com um crocodilo para salvar a vida de seu cachorro ou a da mulher para quem o incêndio da própria casa acabou sendo inspirador.

Na Mad, o que eu mais gostava era de uma seção chamada A Mad Look At…. Eram quatro ou cinco páginas sem diálogos com tirinhas relacionadas a um determinado tema. A seção contemplava um amplo espectro de assuntos, que iam de “Mad vê o namoro” a “Mad vê os contos-de-fada”, passando por “instrumentos musicais”, “enfermeiras”, “dinossauros”, “camping”, “serviço militar”, “zumbis”, “aquecimento global”, “cabelo” etc.

Seu autor, o espanhol radicado nos Estados Unidos Sergio Aragonés, é até hoje um dos principais colaboradores da revista. A Mad foi fundada em 1952, Aragonés estreou em 1963 e até a edição de número 500, publicada em 2009, havia contribuído em 424 números. Seu traço arredondado, seus personagens desajeitados, seu sarcasmo simpático: para mim, o desenhista era o centro, terno e afetivo, da revista. (Em tempo: Aragonés é autor também de outra série emblemática, a das pequenas charges feitas nos cantinhos das páginas da Mad, as “Marginais”. São vinte e cinco desenhos por edição, e nos últimos cinquenta anos apenas um número da revista ficou sem as miniaturas — porque foram extraviadas pelo correio).

Lembro de uma das tirinhas de Aragonés em que um caminhão passava em frente à porta da Mad e despejava um latão cheio de lixo. No quadro seguinte, os editores, redatores e desenhistas iam até a calçada e, felizes da vida, recolhiam todo o lixo para dentro da redação. Lixo, afinal, era o que se dizia ser a matéria-prima da revista — o que inclui o papel-jornal ISO 9000 do Horror em que a Mad era impressa. No prefácio que escreveu para um dos mais destemidos romances do século XX, Ferdydurke, de Witold Gombrowicz, Susan Sontag diz algo que me faz pensar nessa charge — e na Mad, na Reader’s Digest e em todas as leituras ruins (mas boas), em todas as capas de livros feias (mas bonitas), em tudo aquilo que não faz sentido (mas faz): “A adolescência porca pode parecer um antídoto drástico para a maturidade presunçosa, e é exatamente isso o que Gombrowicz tem em mente”.

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Esse é o grande tema de Gombrowicz. Como declarou no fim da vida: “Imaturidade — que palavra contemporizadora e desagradável! — tornou-se o meu grito de guerra”. Ferdydurke é a história de um homem de trinta anos que é raptado e se vê subitamente de volta ao colégio. Em meio a duelos de caretas e professores que mais parecem fatias de uma pizza amanhecida, ele proclama a imaturidade como a única maturidade possível.

É conhecida a história de que em 1939 Gombrowicz saiu da sua Polônia natal para fazer a viagem inaugural de um navio rumo a Buenos Aires. Depois de uma semana na cidade, a Alemanha declarou guerra a seu país, obrigando o escritor a permanecer na Argentina. Sua estadia, que seria de alguns dias, durou vinte e quatro anos. (O caráter acidental deste exílio, no entanto, acaba de ganhar nova versão, com o recém-lançado Kronos, um complemento de seu Diário que só agora veio a público — neste novo relato, Gombrowicz revela que sua permanência na Argentina não fora casual: a viagem havia sido estimulada por sua família, que queria afastar do território polonês o jovem autor, ante a ameaça de iminentes ações bélicas.) Seja como for, Gombrowicz se viu, assim, longe da Europa e lançado no “imaturo” Novo Mundo.

“A principal característica da Argentina é a de uma beleza jovem e baixa, próxima do chão”, escreveu em seu Diário argentino (inédito no Brasil). “Aqui, somente o vulgo é distinto. Apenas a juventude é infalível. É um país ao contrário, onde o vendedor ambulante de uma revista literária tem mais estilo do que todos os colaboradores da mesma revista.” Longe de casa, Gombrowicz vai precisar aprender os códigos locais, se adaptar, e não conhece ninguém, não sabe falar a língua, está sozinho e numa posição inferior. “Sempre tive inclinações a buscar na juventude, na própria ou na alheia, um refúgio frente aos ‘valores’, ou melhor, frente à cultura. A juventude é um valor em si, é destruidora de todos os outros valores, porque ela se basta, não necessita de nada mais. Diante do aniquilamento de tudo o que até agora possuía: pátria, casa, situação social e artística, eu me refugiei na juventude.”

Ferdydurke foi publicado no fim de 1937, dois anos antes da viagem de Gombrowicz. A Mad tornou-se famosa durante os anos 60 e 70, no auge da contracultura. Em seu prefácio, para a edição da Yale University Press (de 2001), Sontag diz que, apesar de ser um romance extravagante, brilhante, audaz e perturbador, a defesa que o autor faz da imaturidade, da juventude e de tudo o que é inferior: envelheceu. Os alvos contra os quais Gombrowicz se insurge já não existem mais. “Os ideais, de estilo europeu, de maturidade, de cultura, de sabedoria cederam claramente seu lugar às celebrações, de estilo americano, do Jovem Para Sempre”, escreve a crítica.

Para o olhar (maduro) de Sontag, o descrédito da literatura e de outras expressões da “alta” cultura como elitistas e antivida é um produto da nova cultura presidida pelos valores do entretenimento. “Hoje, quem proclama que ama o ‘inferior’, alegará que isso não é nada inferior; é na verdade superior”, anota a norte-americana. “Dificilmente haverá, entre as acalentadas opiniões contra as quais Gombrowicz se batia, alguma que ainda seja acalentada.”

Sontag tem um ponto. Ao mesmo tempo, me parece uma alegria que em algum lugar exista Witold Gombrowicz e que possamos voltar a ele de vez em quando. Quando os tempos ficam estranhos e tudo parece igual e ditado por certo “bom-gosto” orgulhoso de si — um “bom” livro, “bom” vinho, “boa” música, “boa” arquitetura, “boa” maneira de se vestir —, faz sentido ler Gombrowicz e a sua defesa furiosa e amalucada do imperfeito.

Como um Lewis Carroll às avessas (se pensarmos na moral vitoriana e nos jogos verbais engraçadinhos e assexuados de Carroll), Gombrowicz funda um país das maravilhas turbinado por sexo, acaso, ironia e desejo, e coloca em questão as formas cristalizadas e convencionais da língua literária. Nesse sentido, tanto ou mais que Ferdydurke, Cosmos é a sua obra-prima. O que Gombrowicz parece nos dizer é: só assim, em lugares escuros, toscos, arriscados e inesperados, é possível captar os tons de um novo estilo.

Antes do ponto final: a leitura mais interessante e surpreendente de Gombrowicz quem fez foi Ricardo Piglia. Em “O romance polonês”, ensaio de Formas breves, o escritor argentino aproxima Gombrowicz de Borges, o que à primeira vista parece impossível — Borges, o europeu; o escritor sério e maduro por excelência. Não vou entrar em detalhes aqui, a coluna ficaria muito longa, mas vale a pena dar uma olhada: o texto de Piglia faz todo sentido e coloca em perspectiva a leitura histórica feita por Sontag, dando novo ânimo e brilho ao sempre jovem Gombrowicz.

 


emilio_fraiaEmilio Fraia é editor, jornalista e escritor. É autor da graphic novel Campo em branco (Quadrinhos na Cia., 2013, em parceria com DW Ribatski) e do romance O verão do Chibo (Objetiva/Alfaguara, 2008, com Vanessa Barbara). Foi repórter das revistas Trip e piauí e editor de ficção da editora Cosac Naify.

 


 

Fonte: Blog da Companhia