Uma nova arqueologia floresceu com a expansão de grandes obras. Mas os profissionais trabalham sob pressão: nem sempre o levantamento do sítio histórico é feito a tempo de evitar perdas.
Solar da Marquesa @ Foto: Maurício de Paiva
Nos últimos anos, toda a área ao redor do metrô – um horrendo vazio urbano que nunca se definiu entre ser praça, confluência de avenidas e terminal de ônibus – se tornou terreno fértil aos arqueólogos. Em uma primeira etapa de escavações, de 2009 a 2010, 30 mil objetos – vasos, xícaras e tinteiros, entre outras louças de origem estrangeira – foram retirados, a maior parte do século 19. Garrafas de vinho do Porto e de cervejas holandesas apontam para a hipótese da existência de uma taverna, em uma parada de viajantes em direção, por exemplo, a Sorocaba, tradicional destino de tropeiros vindos da região Sul do Brasil carregados de mercadorias.
A origem de Pinheiros confunde-se com a da própria cidade: logo em 1560, jesuítas criaram um aldeamento na margem direita do rio hoje homônimo. “Parte do caminho indígena Peabiru passava pelo que é hoje a rua Butantã”, conta Juliano Meneghello, de 33 anos, que chefia uma segunda fase de escavações. Chácaras e fazendas ilustravam o clima rural do bairro, antes de ele começar a se transformar de vez, em fins do século 19, com a chegada dos imigrantes. A canoa era um meio de transporte comum desses ribeirinhos paulistanos. Até que, a partir de 1940, obras de retificação do leito foram iniciadas para acabar com as enchentes e redirecionar as águas para o reservatório Billings e a usina hidrelétrica de Henry Borden, na serra do Mar, transformando aos poucos o curso d’água sinuoso e ladeado por árvores em um canal de esgoto linear e sem vida. (No verão deste ano, nuvens de pernilongos que encontram na água suja e parada um criadouro ideal infernizaram a vida dos moradores.)
Meneghello caminha pelo canteiro-sítio com uma cópia do primeiro mapa conhecido do bairro, de 1897, que mostra o traçado de algumas ruas ainda atuais. “Uma igreja de 1871 está sob a atual, a de Nossa Senhora do Monte Serrate”, diz ele, indicando o templo cristão enquanto segue até uma mancha de terra preta e fofa no subsolo. Ele me apresenta seu mais intrigante achado: estacas de madeira fincadas que serviam de reforço para o alicerce das construções. Boa parte da área escavada é de casas da década de 1930, sobre as quais foram erguidos prédios nos anos 1960 – a arquitetura do bairro antes do começo da atual fase de demolição. Por todos os lados brotam utensílios de uso doméstico: vidros, louças, uma boneca de porcelana. Um poço é identificado a menos de 1 metro da superfície, com restos de carvão. “As casas da época ainda mantinham lixeiras para queimar os resíduos”, diz.
O arqueólogo sai do canteiro e senta-se comigo em um bar na esquina da obra. Ofereço um café, mas ele não aceita. Concentrado e confiante, Meneghello parece estar permanentemente refletindo sobre as reentrâncias da terra que vasculha e as possibilidades que se oferecem à medida que as camadas de solo e ruínas vão surgindo. “No princípio, cogitamos até mesmo a hipótese de as estacas de madeira serem de palafitas, pois boa parte do bairro era uma várzea. Agora sabemos que não são. A cada metro, reidentificamos melhor o espaço”, conta. É começo de fevereiro, o céu fecha de repente, e ele parte de novo para seu canteiro cheio de histórias ocultas. Eu me refugio na igreja vazia e escura enquanto a tempestade desaba sobre carros aprisionados pela enxurrada, pedestres ensopados e os restos de uma cidade em incessante transformação.
Essa é a paisagem do arqueólogo urbano. “Algumas vezes, depois de sair de uma escavação em uma área central, as pessoas me olham com pena e medo. Parecem pensar: pobre garota de classe média, toda suja de barro; virou mendiga ou viciou-se em drogas e acabou na rua”, conta Paula Nishida, bem-humorada. Ou seja, por enquanto, o arqueólogo é uma criatura invisível nas ruas da cidade, ao contrário do advogado de terno a caminho do escritório, do médico de branco, do estudante de mochila nas costas, do motoboy apressado. “Nessas ocasiões, já me flagrei pensando no Indiana Jones perambulando por São Paulo”, diz ela. “O herói do cinema perdido no metrô, bravo no trânsito, ilhado por um temporal de verão. Ou mesmo sendo assaltado. Seria, com certeza, sua maior aventura.”
Fonte: National Geographic Brasil
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