Escavada pela primeira vez em 1988, por Margarida Andreatta, a pioneira da arqueologia paulistana, a casa bandeirista do Itaim veio abaixo em 2009, vítima dos especuladores vorazes que disputavam o terreno. A empreendedora que, enfim, oficializou a compra, em 2010, levou adiante um enorme termo de ajustamento de conduta, que previu a recuperação do sítio e um levantamento de seu entorno. Assim, a mais antiga cerâmica já encontrada em São Paulo brotou em plena Faria Lima: um fragmento de pote do século 16. Ao longo de três anos, Rafael de Souza e sua equipe retiraram do terreno quase 40 mil peças, de cerâmicas a ossos de animais e telhas, a maioria dos séculos 18 e 19. Foram escavadas ainda duas lixeiras anexas que serviram a um orfanato de meninas de 100 anos atrás. Nos fundos, restam ruínas de taipa de outra casa, abrigo de médicos de um sanatório.
Foto: Maurício de Paiva
A empresa para a qual Souza trabalha já resgatou peças de cozinha de 200 anos de idade em um sítio no bairro da Luz. Na Lapa, localizaram 30 mil peças da Santa Catharina, fabricante pioneira de louças brancas. “Quem passa pela rua hoje não imagina que, sob um condomínio de alto padrão, estão os remanescentes da primeira fábrica de louça de faiança fina do país e que, sob a quadra de tênis, se encontram centenas de milhares de fragmentos e peças inteiras de cerâmica branca histórica”, diz o arqueólogo.
Na mesma zona oeste, ele e sua equipe escavaram, em 2012, um trecho da área entre os viadutos Pompeia e Antártica, onde, até os anos 1970, funcionavam as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo, maior complexo industrial da América Latina nas décadas de 1930 e 40. Levantar a planta baixa de uma fábrica de margarina foi, até hoje, o único estudo arqueológico do legado dos Matarazzo, família cuja mentalidade empresarial renovou os hábitos da população paulistana no início do século passado. “O projeto do conde era europeizar São Paulo”, diz Souza, “estabelecendo um mercado de produtos industrializados.” O empresário comandou a urbanização da várzea do rio Tietê para poder escoar a produção da fábrica por via férrea e fluvial. Além das latas nas quais a margarina era comercializada, “encontramos blocos da gordura usada na produção, que derreteram quando expostos ao sol. O cheiro forte foi um lembrete daquilo que mais interessa a um arqueólogo urbano: entender o ambiente em que viviam e trabalhavam tantas pessoas”.
MUITOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS da metrópole foram estudados com o impulso das chamadas “operações urbanas”, instrumentos legalmente consolidados em 2001, por meio dos quais o poder público reconhece o potencial de adensamento de regiões estratégicas e investe em melhorias na infraestrutura para a chegada de empreendimentos privados. Em tese, serviriam para revitalizar áreas decadentes, mas são acusadas por seus críticos de servir mais ao mercado imobiliário do que à recuperação do espaço. “Apesar de algumas controvérsias, as operações trouxeram a arqueologia à rotina da cidade”, diz Paula Nishida, coordenadora do Centro de Arqueologia de São Paulo. “A expansão da construção civil permitiu o estudo e o acesso aos sítios.”
Desde o fim de 2002, com a publicação de uma portaria do Iphan, todo e qualquer empreendimento de médio e grande porte, em áreas de relevância histórica e “capazes de afetar o patrimônio arqueológico”, passaram a carecer de licenças. A chamada “arqueologia de contrato” criou um mercado de trabalho, atraindo ao setor uma série de recém-formados na área de humanas, sobretudo de história. Também surgiram os primeiros cursos de graduação. Os jovens, desde cedo, trabalham sob pressão – o imbróglio jurídico no terreno da casa do Itaim é simbólico do conflito comum que opõe a urgência dos construtores e o ritmo dos pesquisadores. Nem sempre o embargo da obra é feito a tempo de impedir perdas irreparáveis. “Não podemos nos contentar em ser meros emissores de licença, sem antes entender a história oculta nos sítios. Não se pode desumanizar o espaço”, critica Rafael de Souza.
Foto: Maurício de Paiva
Para muitos profissionais, a nova arqueologia ainda não foi bem assimilada sequer pelos moradores. “Em geral, pensam que nosso trabalho é localizar tesouros”, conta Paula Nishida, enquanto vistoria uma escavação em outra casa bandeirista, no bairro do Butantã. O lugar vai em breve virar sítio-escola, ou seja, um espaço de dimensão acadêmica que acolherá, além de estudantes, voluntários interessados em participar da reidentificação do antigo terreno às margens do rio Pinheiros. “A ideia é chamar pessoas interessadas, mesmo sem treinamento prévio em arqueologia, para escavar”, explica Astolfo Araujo, que coordena os trabalhos.
O objetivo é entender o processo de ocupação da área. Se havia ali um porto ou um forte, por exemplo. Mas a interação com um sítio muitas vezes associado aos bandeirantes – embora não seja comprovada a habitação de um deles na casa – talvez também sirva, na visão de Araujo, para uma revisão da controversa imagem desses personagens – às vezes retratados como audazes desbravadores, às vezes como crápulas que investiam em apresamento de mão de obra para o trabalho nas plantações de trigo do planalto paulista. Para obter lucro, vendiam o excedente, escravos ou trigo. “Um grupo de meia dúzia deles era acompanhado por legiões de indígenas, que também se beneficiavam desse esquema de apresamento de tribos inimigas”, diz o arqueólogo. “Os bandeirantes foram protocapitalistas.” Ou seja, faziam negócios que lhes pareciam corretos na ética de seu tempo. “Nem um pouco diferentes de nós.
Para Valdirene Ambiel, que usou técnicas forenses para pesquisar os corpos da família real, a história do Brasil muitas vezes se fiou em rumores que, reproduzidos ao longo dos séculos, se tornaram verdades. A arqueologia, ao dispor de métodos e técnicas próprios e lidar com fontes diferentes das utilizadas pelos historiadores tradicionais, “tem a chance de, enfim, elucidar muitos personagens”, avalia. “Podemos investigar pessoas e questões de centenas de anos ou apenas de um minuto atrás. Em vários países, a arqueologia forense serve para resolver casos criminais.”
Uma das questões que a incomodam, de fato, é quase um caso de polícia na corte: a hipótese de que a morte de dona Leopoldina poderia ter como causa indireta uma briga com dom Pedro. Algumas biografias reduzem o imperador a um personagem truculento tanto na forma de governar como no trato com suas esposas. Tais descrições culminaram na lenda de que um chute teria precipitado o aborto que levou a imperatriz à morte, no fim de 1826. “Dizem que ela rolou as escadarias do palácio na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, onde viviam. No Museu Nacional, até hoje, há quem acredite ver seu fantasma”, diz.
Em busca de respostas, ao longo de sete meses, de fevereiro a setembro de 2012, Valdirene fez da cripta sua segunda casa, coordenando uma equipe de cientistas em um intercâmbio pioneiro de disciplinas – física, química, diversas áreas da medicina – para análises dos três corpos reais, em um projeto de mestrado defendido por ela no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP). Como, na arqueologia forense, a ideia é saber tudo o que envolveu o óbito (causa, ritos funerários) para preservar os restos, um amplo espectro do trabalho baseou-se na tentativa de entender não apenas as circunstâncias do óbito mas os processos usados para a conservação do corpo e os agentes de sua decomposição. “Meu projeto é também um estudo da morte, de suas consequências e seus efeitos”, diz.
C O N T I N U A . . .
Fonte: National Geographic Brasil
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