Em meio ao frenesi diário de uma cidade como São Paulo, um evento que pode mudar a história do país talvez esteja ocorrendo bem perto de nós. Agora. Sem que seja anunciado. Sem que se possa distingui-lo.
Foto: Maurício de Paiva
Na véspera do feriado da Páscoa de 2012, o caos do trânsito materializou-se logo no começo da tarde no bairro do Ipiranga, sobretudo ao redor da praça que circunda o monumento erguido nas imediações do riacho em que, em 1822, dom Pedro I proclamou a independência do Brasil. Pouca gente sabe, mas o imperador ainda está lá, uns 10 metros abaixo da rua, em um mausoléu de paredes de mármore negro, e repousa ao lado de suas duas esposas, Leopoldina de Habsburgo e Amélia de Beauharnais-Leuchtenberg. A cripta imperial está fechada para uma importante solenidade. Passa das 15 horas quando dois padres carmelitas começam a rezar o Pai-Nosso em latim, diante de cientistas e representantes da família real. Os restos de dom Pedro, pela primeira vez em 180 anos, serão exumados.
O corpo está envolvido em três ataúdes. O externo, de pinho, tem alças de prata com desenhos de dragões, espadas e os brasões de Brasil e Portugal – sinal da ideologia de 1972, alguém logo argumenta na sala, ano em que foi enviado para cá por causa da afinidade entre as ditaduras militares dos dois países. Dentro dele, uma urna de chumbo amassada e, além, o caixão, de madeira rudimentar, que encerra a ossada. Muitas pessoas usam máscara para evitar a inalação de fungos. Quando o último ataúde é enfim aberto, dom Pedro ressurge no Brasil em uma versão sem retoque nem distinção. Sem glamour. O esqueleto tem a nuca fora de lugar e a cabeça voltada para a direita. Um buraco na base do crânio atesta um procedimento feito após a morte, em 1834, para a retirada do cérebro. Os presentes observam, um de cada vez, estupefatos. Sou convidado a dar uma espiada. Boa parte dos ossos está submersa em montanha de cinza e tecidos decompostos, e me parecem uma mistura insólita de cascas de árvore cobertas por açúcar de confeiteiro.
A máscara me sufoca, e preciso sair para respirar. Na rua, São Paulo segue indiferente: um skatista quase me atropela assim que piso do lado de fora do monumento. Adolescentes jogam bola na praça ou papeiam ao celular diante da imagem em bronze do imperador em seu cavalo ao empunhar a espada e gritar pela independência. A vida flui leve nessa tarde pré-feriado. Ele ficaria feliz ao vislumbrar, quase dois séculos depois, o país que, em um gesto, ajudou a criar.
Na cripta, sua memória começa a ser resgatada. A emoção toma conta do ambiente. Valdirene do Carmo Ambiel, a historiadora e arqueóloga que coordena a cerimônia como uma anfitriã do nobre português, pede a palavra. “Dom Pedro I foi o maior dos Bragança. Formou um país, foi pai excelente e militar exemplar”, diz. “Agora, finalmente, ele está em casa. E vamos cuidar dele.”
Foto: Maurício de Paiva
SÃO PAULO NÃO É ROMA, cheia de catacumbas milenares, nem Paris, com sua rede de galerias subterrâneas, muito menos Cairo, no Egito dos faraós. Mas, aos poucos, a maior metrópole do hemisfério Sul descobre uma conexão com seu subsolo, em uma atividade que começa a lançar luz sobre episódios, personagens e lugares obscuros. Os arqueólogos estão por aí. Dentro da cripta imperial, buscando entender a história oficial em uma investigação com técnicas forenses. Na rua, levantando os hábitos domésticos das famílias que viviam em um terreno antes do início de grandes obras. Ou escavando surpreendentes sítios pré-históricos – um deles com vestígios de milhares de anos no luxuoso bairro do Morumbi.
A nova arqueologia urbana desfaz uma caricatura. “A matéria-prima da atividade, na maior parte das vezes, são os objetos. Por isso, tanto se pode encontrar o arqueólogo no interior da Caatinga e da Amazônia quanto na zona urbana, pesquisando uma rede de drenagem de esgoto”, define Paulo Zanettini, um dos mais experientes do mercado. “Nosso trabalho é identificar algo que não está mais visível. Expor aquilo que o tempo encobriu”, diz. “Longe das figuras de Indiana Jones ou Tomb Raider, que buscam cidades perdidas ou tesouros que levarão a museus, o que nos interessa é saber como a sociedade era, e como se transformou. Lidamos com objetos do cotidiano, que explicam como as pessoas comiam, dormiam, educavam os filhos. É o resto da cama, do botão da roupa, do prato onde comeu.”
“Na cidade, a camada de asfalto é, em tese, a última de um grande e despercebido sítio”, explica Rafael de Abreu e Souza, enquanto caminha a meu lado, diante do mais bem-acabado retrato das transformações paulistanas que alimentam o trabalho de arqueólogos como ele. Olhamos para o alto. O teto de um vão livre de 40 metros de largura reflete, em espelhos azulados a 20 metros do chão, uma modesta casinha colonial do século 18 agora integrada ao jardim de um novo espigão empresarial na avenida Faria Lima, no bairro do Itaim. A cena intriga pedestres ou motoristas, e é um elo entre dois mundos. Enquanto um exército de operários finaliza o acabamento desse monumento ao futuro, um punhado de jovens empunha pás, espátulas e peneiras para garimpar no solo resquícios de ocupações do lugar.
No coração de uma área nobre, o terreno por duas vezes foi negociado por valores recordes – a última, em 2011, envolveu 600 milhões de reais, na maior transação do tipo registrada no município. O empreendimento que se ergueu ali faz jus aos valores: o edifício Pátio Bandeiras possui duas torres de 19 andares interligadas por outra de 11 pavimentos, as três alinhadas na cobertura por uma laje de 5 mil metros quadrados. Abriga a sede do Google e de bancos de investimentos e é o mais caro endereço comercial do país.
Sob essa riqueza contemporânea, está o passado da cidade. O sítio do Itaim figura como um dos bens tombados na lista de “casas velhas” arroladas pelo poeta Mário de Andrade em suas andanças pelo estado de São Paulo, em 1937, incumbido pelo recém-criado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de determinar imóveis que exigiam tombamento. Muitas dessas moradias rurais do período colonial acabaram consagradas depois como “casas bandeiristas”, ou dos bandeirantes, apesar de nem sempre registrarem a presença desses exploradores cuja mentalidade empreendedora e expansionista ficou associada à identidade paulista. (Um deles, Afonso Sardinha, que minerava ouro em cavas aos pés do pico do Jaraguá, ponto culminante da cidade, era dono da fazenda Ybiatá, onde hoje estão instaladas a Cidade Universitária e o Instituto Butantã.) Foram construídas do século 16 ao 18 com a técnica da taipa de pilão, na qual as paredes são compostas de barro socado entre duas superfícies de madeira. Também estavam sempre próximas a fontes de água, em terrenos elevados e com a frente voltada para o norte. Os tijolos tradicionais, apesar de produzidos desde o século 17, só predominariam 200 anos depois; com a riqueza do ciclo do café e a chegada dos imigrantes, a taipa foi substituída por uma arquitetura de feições europeias.
C O N T I N U A . . .
Fonte: National Geographic Brasil
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