Por João Ozorio de Melo
A atriz Angelina Jolie popularizou uma decisão que a Suprema Corte dos EUA terá de tomar em breve: se uma empresa privada pode patentear genes humanos. Na terça-feira (14/5), ela divulgou que se submeteu a uma mastectomia dupla (remoção das glândulas mamárias), para não correr o risco de contrair câncer de mama. Seu organismo ainda não apresentava qualquer sinal de câncer. Mas um exame genético revelou que seus genes BRCA1 e BRCA2 sofreram mutações. Isso levou à conclusão médica, já estabelecida, de que o risco de ela desenvolver câncer de mama era de 87% e de desenvolver câncer de ovário, de 50%.
A detecção mais do que precoce desses tipos de câncer só se tornou possível porque a empresa de biotecnologia Myriad Genetics, de Utah, conseguiu isolar a sequência desses dois genes mutados e desenvolveu um método para localizá-los nos organismos das pessoas. Assim, qualquer mulher poderia, como Angelina Jolie, remover as glândulas mamárias antes mesmo que a dupla de BRCAs, que são genes do bem antes de sofrerem as mutações, comecem a desenvolver tumores.
Seria uma descoberta que a comunidade científica poderia celebrar com muito entusiasmo, se a empresa não tivesse patenteado os genes, o que foi considerado uma atitude na contramão de tudo o que os cientistas do mundo vêm fazendo até hoje nos estudos de sequenciamento genético ou no Projeto Genoma Humano, que é um trabalho de colaboração entre profissionais de vários países.
Assim, em vez de comemorar, a Associação para a Patologia Molecular, com o apoio de um conglomerado de cientistas, médicos e pacientes de câncer e da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), processou a Myriad Genetics. Todos contestam o direito da empresa de patentear os genes. O processo passou por todas as instâncias e chegou à Suprema Corte dos EUA.
Agora, a questão perante os ministros da Suprema Corte, que, por acaso, é dos EUA, mas poderá ser de qualquer país, conforme a biotecnologia evolui, é: uma empresa tem o direito de patentear qualquer coisa que é criada pela natureza? A Suprema Corte dos EUA indicou que não sabe responder a essa pergunta na audiência do mês passado, quando os ministros ouviram argumentos das duas partes e lhes fizeram perguntas.
As partes não ajudam muito os ministros a decidir, porque têm argumentos exatamente opostos. E praticamente todos eles giram em torno de questões científicas, econômicas, sociais e médicas que, em algum momento, os ministros poderão identificar algum ponto de contato com a lei.
Por exemplo, um argumento pode ser anunciado juridicamente, mas a resposta leva a uma discussão científica. Um deles: a comunidade científica alega que a empresa não inventou os genes e, portanto, não pode patenteá-los. A empresa diz que pode porque descobriu uma forma de isolar o sequenciamento dos genes e conseguir reproduzi-los em laboratório. Isto é, a empresa criou uma cópia sintética que é quimicamente igual ao gene original, a partir da qual é possível desenvolver o teste que identifica os genes mutados no organismo humano.
No entanto, cópias sintéticas de genes são criadas de forma rotineira em laboratórios, através de métodos muito utilizados por biologistas moleculares. Esses métodos não foram, portanto, inventados pela Myriad. Mas a empresa insiste que ela inventou cópias físicas das sequências desses genes. Assim, ninguém pode ler as sequências dos BRCAs sem a permissão da Myriad.
Sob um ponto de vista com conotações econômicas, a Myriad alega que, sem patente, os laboratórios vão se sentir desestimulados a fazer grandes investimentos na biotecnologia. A comunidade científica diz que é o contrário: os laboratórios vão se sentir desestimulados a investir em ciência que já foi patenteada e, portanto, não haverá evolução. E também vai desestimular outras empresas a desenvolver métodos mais eficazes, práticos e mais baratos de testar as mutações dos genes.
Além disso, abre um precedente perigoso: se dois ou mais laboratórios desenvolvem pesquisas simultaneamente, um poderá registrar a patente e os demais terão jogado fora seus investimentos e esforços. Em vez de trabalho de colaboração, haverá competição. E a descoberta e o isolamento de genes não servem apenas para prever riscos de câncer de mama e de ovário. Servem para identificar riscos de diversas doenças.
O alto custo do teste remete a discussão a uma questão social. O teste da Myriad custa mais de US$ 3 mil, segundo os sites Healthline, Philly.com e do jornal Los Angeles Times. É um preço proibitivo para a maioria das mulheres americanas não têm o poder aquisitivo de Angelina Jolie. Nem todos os seguros cobrem os custos do teste e 33 milhões de americanos não têm qualquer tipo de seguro-saúde.
A questão médica é a da “segunda opinião”. É um procedimento comum nos EUA. Sempre que um diagnóstico é sério, complexo ou muito caro, os pacientes, aconselhados por seus próprios médicos, procuram uma outra instituição de saúde para obter um segundo diagnóstico, chamado de “segunda opinião” médica. No caso do teste dos genes BRCA1 e BRCA2, ninguém pode fazer isso. A Myriad não autoriza a nenhuma outra empresa fazer o teste para confirmar o diagnóstico. Se houver erro, uma mulher pode remover os seios desnecessariamente.
Há um outro argumento que a Suprema Corte pode não levar em conta, mas que incomoda não apenas as comunidades científica e médica, mas diversas organizações. É mais uma questão de interpretação. Elas acreditam que, se a Myriad ganhar a causa, ela passa a ser dona dos genes BRCA1 e BRCA2 de Angelina Jolie e de todas as mulheres dos EUA — aliás, de toda a população americana, porque homens também estão sujeitos a desenvolver câncer de mama.
Se a Suprema Corte decidir que nenhuma empresa, incluindo a Myriad, tem direito a patentear genes humanos, vai ter de traçar uma linha muito fina entre “criações da natureza” que podem ou não podem ser patenteadas. No início do mês, a corte já abriu uma exceção: decidiu que um fazendeiro de Maine não pode reproduzir as sementes da Monsanto, a partir de grãos gerados por safras de outros produtores, para fazer o seu plantio. Sementes são criações da natureza, porém a Monsanto desenvolveu uma semente geneticamente modificada, entendeu a corte.
Fonte: Consultor Jurídico
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