O capital, de Karl Marx (1818-1883), não é um livro fácil. Talvez seja até mesmo um dos mais complexos de seu tempo, pela soma de conhecimentos que traz, que exige um leitor informado sobre filosofia, história, economia e política, entre outras disciplinas. Além disso, ao inaugurar um campo do saber, faz uso de um método, a dialética, inspirada na filosofia de Hegel, mas com um foco definido na análise crítica do modo de produção de riqueza baseado no mercado. Em outras palavras: um novo objeto, uma nova ciência e um novo método. A isso se soma o volume da obra, que alcança milhares de páginas em quatro volumes, sendo que apenas no primeiro deles Marx pôs o ponto final.
O lançamento de uma nova edição de ‘O capital – Crítica da economia política’, com tradução feita diretamente do alemão por Rubens Enderle, é um passo fundamental no projeto da Editora Boitempo de trazer para o português as obras completas de Marx e Engels. Até agora já foram lançadas traduções de 16 títulos, entre eles dos clássicos A ideologia alemã e Grundrisse, mas com o primeiro volume da opus magnum do pensador, com quase 900 páginas, configura-se um nível de maturidade há muito exigido no âmbito dos estudos marxistas. Como se sabe, até mesmo por razões políticas, as traduções da obra de Marx foram feitas de forma assistemática, muitas vezes de segunda mão, e sem um projeto que abarcasse toda a produção teórica do filósofo.
O primeiro volume tem como subtítulo “O processo de produção do capital”. É obra que cobrou do autor muito tempo de estudo e até mesmo uma parcela de sua saúde. Marx havia se mudado para a Inglaterra em 1862, depois de várias transferências de cidade ocasionadas por sua militância política e na imprensa. No novo país, esperava não apenas aprofundar seus conhecimentos sobre o funcionamento do capitalismo mais avançado de seu tempo, como decifrar suas leis internas. A cena de Marx, afundado por horas seguidas em livros e relatórios no Museu Britânico, enquanto vivia a penúria doméstica, é clássica em todas as biografias. De lá saiu, em 1866, com o livro um finalizado. A primeira edição chegaria aos leitores em 1867, em Hamburgo. Os demais volumes, a partir dos manuscritos de Marx, seriam editados por Engels, depois da morte do amigo da vida inteira.
A edição da Boitempo é amparada ainda por três textos introdutórios, que se complementam. O primeiro é assinado por Jacob Gorender e faz uma apresentação da obra a partir de seus elementos mais significativos, como a gênese histórica, a definição de ‘O capital’ no âmbito das ciências sociais e uma análise da estrutura interna do livro. O texto seguinte, do filósofo francês Louis Althusser, retoma os argumentos do célebre Ler ‘O capital’, que marcou os estudos sobre Marx nos anos 1960, atentando para as principais dificuldades teóricas da leitura da obra. Por fim, em “Considerações sobre o método”, José Arthur Gianotti analisa a dimensão filosófica de ‘O capital’. Completam o volume prefácios das quatro primeira edições, cartas de Marx (uma delas inédita, dirigida a Vera Ivanovna Zasulitch, sobre a perspectiva do desenvolvimento na Rússia e a possibilidade da revolução no país), além de cronologia que interliga momentos da vida do autor com fatos políticos e culturais de seu tempo.
Tamanho esforço para levar o livro aos leitores contemporâneos evoca uma questão: ‘O capital’ ainda teria o que dizer ao mundo de hoje? Não se trata de pergunta retórica. Tantas vezes sepulta, a obra de Marx parece retornar em momentos de crise. Sempre que se levantam os coveiros da história, das ideologias e das utopias, a primeira vítima quase sempre é Marx, que ganha a caricatura de um homem de outro tempo, a teorizar sobre um sistema econômico que foi capaz de vencer todas as crises e derrubar todos os muros. No entanto, basta que a roda da história volte a girar, seja em protestos políticos ou crises reiteradas do capitalismo, com suas consequências cada vez mais reais e próximas, para que o pensamento marxista evidencie sua significação. Não se trata de dizer que Marx estava certo ou errado, mas que seu pensamento ainda ajuda a entender os problemas atuais.
Por isso, além da análise econômica e da criação do materialismo histórico, a obra de Marx avulta em força pelo estilo e argumentação. ‘O capital’, com seu sólido e intrincado edifício argumentativo e analítico, talvez não seja a mais palatável das obras marxistas, mas não deixa de trazer ao leitor determinado o prazer de encontrar a força da ironia e até mesmo as referências literárias clássicas, tão ao gosto do filósofo (que na juventude quis ser poeta). Além disso, algumas passagens parecem compostas a partir de personagens reais. Como destacou o americano Marshall Berman, em Aventuras no marxismo: “O que torna ‘O capital’ tão fascinante é que, mais do que qualquer outra coisa que Marx tenha escrito, o livro traz à tona sua visão da vida moderna como totalidade. Essa visão está espalhada sobre uma imensa tela: mais de mil páginas só no primeiro volume; centenas de personagens – mineiros e meeiros, donos de loja e donos de moinho, poetas e panfletistas, médicos e religiosos, pensadores e políticos, anônimos de mundialmente famosos – falando com voz própria”.
Esforço de leitura Mas é preciso também deixar claro que se trata de obra que exige estudo. No Brasil, ficaram conhecidos, a partir dos anos 1960, diversos seminários de leituras que atravessaram a década, em que o foco era a leitura de ‘O capital’, atentando para suas dimensões teóricas e práticas. Esse esforço de leitura – já que a obra tem seus momentos de aridez – gerou uma forte tradição de interpretação da obra de Marx, que se espalhou em diversos departamentos universitários. O que pode ser interpretado como vitalidade da academia, muitas vezes ganhou oposição ferrenha, sobretudo em razão de leituras por vezes ortodoxas demais e, em outros momentos, exageradamente marcadas pelo jargão de escolas concentradas em torno de pensadores com vocação para guru. Não se pode deixar de salientar os que, por idiossincrasia ou ideologia, “não leram e não gostaram” de ‘O capital’, considerado por eles um livro sobre equívocos, cuja leitura devia ser evitada. Esses, que Francisco de Oliveira chama de “sicofantas do liberalismo”, talvez tenham perdido boas chances de vestir a carapuça com os sarcasmos que Marx esparge em ‘O capital’.
Vencidas as 900 páginas do primeiro volume, o leitor certamente entenderá melhor o mundo em que vive. Mas o maior mérito do livro, independentemente da radiografia do modo de produção capitalista, talvez seja abrir os olhos para o pensamento marxista. Não no sentido de convencer as pessoas a se filiarem às hostes da esquerda, mas de alargar seu espírito para os demônios que habitam o cotidiano das relações alienadas e consumistas de nosso tempo. Muitos vão se surpreender com Marx. Um pensador que falava tanto da exploração do trabalho porque apostava que o melhor do homem era a poesia; que não perde tempo em apontar a sociedade perfeita (sua atenção era para a imperfeição do que via à sua volta); que se afundou nos estudos de economia exatamente para reduzir sua importância na vida da sociedade; que via no socialismo a continuidade da tradição de liberdade e conquista dos direitos civis. O próprio Marx, certa vez, afirmou que não era marxista.
O que o livro oferece ainda ao leitor é a abertura à posteridade criada por ele. Boa parte do pensamento social, cultural e político contemporâneo só é plenamente compreensível a partir da leitura de Marx e, entre suas obras, sobretudo de ‘O capital’. É desse monumento da inteligência humana que brotam a social-democracia europeia, as diversas experiências revolucionárias do século 20 (inclusive para se acercar de seus descaminhos), filosofias como a teoria crítica da Escola de Frankfurt, algumas correntes da psicanálise que analisam o papel repressor da cultura, os estudos culturais, os críticos da globalização e até aqueles que concordam com os defeitos do capitalismo, na vertente keynesiana, em tudo oposta ao marxismo.
Quem se aferrar nas profecias fanadas vai perder o melhor de Marx, como de resto de todos os pensadores. Os que, no entanto, vivem com a sensação de que “tudo que é sólido se desmancha no ar” podem encontrar um parceiro na pesquisa profunda das causas desse infeliz e tacanho modo de estar no mundo. Enquanto outro mundo possível não vem.
Fonte: Diário de Pernambuco
O CAPITAL
Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital
(Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie)
Karl Marx
Editora: Boitempo
Páginas: 856
Tradutor: Rubens Enderle
Ano: 2013
preços:
Brochura: R$ 98
Capa dura: R$ 139 (tiragem limitada)
E-book: R$ 49 (a partir de 1º de maio, preço a confirmar)
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